Às 8h de segunda-feira (4), o comandante-geral da Polícia Militar de Minas Gerais, Rodrigo Sousa Rodrigues, deu início ao curso de “Uso Adequado da Força”.
A uma plateia formada exclusivamente por homens, todos instrutores da PM-MG com patentes que vão de sargento à major, falou do imperativo de “seguir protocolos” em abordagens a cidadãos tidos como suspeitos, evitando “desgastes à imagem da corporação”.
Citou o caso de George Floyd, morto nos Estados Unidos durante uma abordagem policial (“quando já estava preso e algemado”, ressaltou), e mencionou a ocorrência que vitimou Genivaldo de Jesus, detido em Umbaúba (SE), por andar de moto sem capacete.
Ele foi colocado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, onde morreu asfixiado pelo gás lacrimogêneo disparado pelos agentes da lei.
Relacionadas Amado e invejado, delegado Nico chefia a Polícia Civil de SP sob holofotes ‘Aqui é meu palácio’: ex-repórter, diretor de presídio mora em cadeia no RN ‘É menos ruim’: para não passar fome, pessoas preferem ir para prisão em BH Rodrigues lembrou também de uma abordagem que aconteceu em abril na região central de Belo Horizonte, felizmente sem desfecho trágico.
Uma policial inquiria um rapaz que estaria a ameaçar um motorista de ônibus.
Uma câmera de rua captou o momento em que o sujeito, que, soube-se então, era praticante de jiu-jítsu, atacou a militar e seu colega de turno.
Após dois minutos tensos de luta, o homem acabou imobilizado pelos dois.
Com a técnica correta, a contenda seria abreviada, com menor risco para ambas as partes.
“Percebem o que quero dizer?”, questionou o comandante.
Foi a deixa para apresentar o coronel da reserva Alcino Lagares, mestre no 5° dan (grau) de aikido e mentor na tentativa de trazer a filosofia da arte marcial japonesa que busca evitar o combate para a PM-MG.
De barba cerrada, cabelo em rabo-de-cavalo e um quê do astro japonês Toshiro Mifune que contrastava com as cabeças raspadas dos alunos, Lagares fez suas as palavras do sensei Morihei Ueshiba, fundador do aikido: “O caminho de um guerreiro é estabelecer a harmonia”, mantendo-se em “posição segura e inatacável”, de forma que nenhum dos lados sofra perdas.
E, já numa expressão bem brasileira, arrematou: “O policial não tem o direito de ir pra rua com raivinha”.
Os dois oficiais saíram, sob aplausos, mas um incômodo se instaurou na plateia.
Um aluno se disse preocupado com o que viu e ouviu numa aula de defesa pessoal de certa torcida organizada de futebol na capital mineira.
“Eles treinam com o objetivo declarado de atacar policiais.
Não podemos abrir mão de soco, chute e do mata-leão em circunstâncias como essa”, argumentou, recebendo a aprovação de um colega: “Top!”
Um dos professores do curso, o sensei Rômulo Lagares, filho de Alcino, esclareceu que o objetivo não era “diminuir o repertório” de técnicas, mas refletir, a partir da filosofia, sobre a dosagem correta da força.
Ao fim do treinamento, essas reflexões vão embasar a elaboração, por parte dos próprios alunos, do novo manual de abordagens da PM-MG.
Fora dos manuais
Domingo, 8 de agosto de 2021, Dia dos Pais.
Por volta da meia-noite, João*, motorista de aplicativo, retornava para casa levando um macarrão na chapa para dividir com a filha pequena.
Quando fez a curva para subir ao Alto Vera Cruz, bairro pobre na região leste de Belo Horizonte, dois policiais em uma viatura pediram para ele estacionar.
Parou. Ordenaram que ele saísse do carro. Um dos policiais o intimou a se sentar no chão.
Ao TAB (UOL), o motorista disse que não pretendia atrapalhar o trabalho dos dois, mas que não estava em atitude suspeita e, portanto, não quis se sentar.
Em resposta, um dos policiais o agarrou pelo braço, enquanto o outro lhe esmurrou a cara, derrubando-o com uma rasteira.
João foi revistado, teve seus documentos verificados e, como não tinha antecedentes criminais, a polícia o liberou.
Preferiu não denunciar o caso à Corregedoria da PM.
“A gente sabe que não ia dar em nada”, afirma.Casos como esse contrariam os manuais e as mensagens que o comando passa aos policiais que atuam nas ruas, garante o coronel Gilmar Santos, que lecionou “Ética e Liderança” no curso de “Uso Adequado da Força”.”A imagem do que deve ser a atividade policial às vezes é distorcida no Brasil, daí a importância de processos de formação como esse”, avalia.
Segundo Santos, a base de uma boa política de segurança pública comunga dos ideais do pensamento samurai: “O policial precisa saber exercer o autodomínio”.
‘Tem um velho segurando o fortão pelo dedo’
Num país onde a ode à violência reverbera nos mais altos escalões do poder, professar técnicas de defesa policial que protejam a integridade física inclusive de quem infringe a lei pode soar utópico para alguns.
“Sou, sem dúvida, um idealista”, confessa o coronel Lagares.Tendo ingressado na PM aos 16 anos, em 1964, “quando se debatia a guerra do Vietnã e as agitações sociais e políticas no Brasil”, o jovem cadete já buscava mentalizar saídas mais pacíficas.
Os anos se passaram e ele estudou judô, alcançando a faixa preta.
No seu entendimento, porém, um aspecto dessa arte marcial limitava a sua aplicação pela polícia: tratando-se de um esporte competitivo, o outro costuma ser encarado como alguém a ser batido.
No início dos anos 1980, o capitão Albano Correa, mestre judoca de Lagares, retornou de uma viagem ao Japão cheio de ideias para compartilhar com o seu discípulo.
Entre elas estava a adoção do aikido como modelo de defesa policial, buscando uma aproximação harmônica entre as forças de segurança e a comunidade.
O Brasil registrou 47.772 assassinatos em 2020, número sempre lembrado pelo coronel.
“Não podemos achar isso normal.”Na aula teórica aos militares, Lagares então discorreu sobre o controle das emoções.
Ensinou que a agressividade é muitas vezes uma tentativa vã de dissimular o medo, em geral conectado a uma “exagerada avaliação subjetiva da realidade”.
Para se manter no eixo e driblar a ansiedade excessiva, os alunos deveriam meditar por um minuto antes das abordagens, lançando mão de técnicas de respiração profunda, orientou.E contou um caso pessoal.
Alguns anos atrás, Lagares, já na reserva da PM, passeava à noite com a esposa pela Savassi, região boêmia de Belo Horizonte, quando o casal deu com dois brigões embriagados.
Um deles estava muito agitado e não obedeceu aos comandos do coronel, que se viu obrigado a interferir.
Aplicou com precisão e rapidez uma técnica que consiste na torção de um único dedo do estressado, com fins de imobilizá-lo — e o imobilizou.
A PM foi chamada, e só meia hora depois uma viatura chegou.
“Tem um velho segurando o fortão pelo dedo!”, impressionou-se o sargento que atendeu a ocorrência, desavisado sobre a fama de Lagares.
Muito sereno como sempre, o coronel não o repreendeu pela impertinência.
* Nome trocado a pedido do entrevistado
Matéria também disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/07/11/policiais-se-inspiram-no-aikido-para-rever-uso-da-forca-em-abordagens-em-mg.htm